Joana d’Arc da Alemanha
Uma retrospectiva da obra da cineasta Ulrike Ottinger visitou Porto Alegre durante uma curta e intensa semana de outubro de 2013. A coletânea invadiu a Sala P. F. Gastal da Usina do Gasômetro depois de estar no Festival de Cinema do Rio, que teve a Alemanha como tema de muitas das mostras. Dona de uma obra extremamente livre e ensaísta, a realizadora percorre o submundo da Berlim dos anos 1980 até recônditos povoados japoneses. Para Ulrike Ottinger, o mundo não tem limites.
Para as histórias que o cinema da alemã quer contar, povoado de cores fortes, atuações milimetradas e roteiros redondos e ousados talvez não dessem conta do recado. Depois de muitas horas de cores fortes e cenas que beiram o surreal, a mensagem de Ulrike só ficou mesmo clara no único filme da mostra não realizado por ela: o documentário A Nômade do Lago (Brigitte Kramer, 2012). É ali que ela responde, de supetão, com uma espada na ponta da língua:
“não existe nada mais irreal do que uma história linear”.
Ulrike: dona de uma agitada vida social na lendária Berlim dos anos 1970, produtora cultural que incentivava o trabalho de jovens realizadores das artes, pintava pop art na Paris sessentista e era fotógrafa do inusitado e das culturas do mundo. Em um bar, este “Jodorowsky alemão” bebeu com Fassbinder e encontrou Nina Hagen.
Em uma trilogia sobre a decadência urbana de Berlim, esta mesma Ulrike queria transgredir através do feminino — e o fez em Retrato de uma Alcoólatra (1979). Queria experimentar tudo que a película poderia suportar, e o fez em Freak Orlando (1981). Queria brincar com as artes e o futuro dos outros, e o fez em Dorian Gray no Espelho da Imprensa Marrom (1984). O experimentalismo nessas três grandes obras iniciais da carreira como cineasta talvez peque pelo excesso de juventude, mas faz tremer o coração dos espectadores quando eles assustadoramente reconhecem a gigante mobilização de música, teatro, dança, cenografia, luz, ângulos e montagem orquestradas por uma artista com poucos filmes na bagagem até então — e pouco mais de 30 anos.
Quando ao final de Joana d’Arc da Mongólia (1989), a princesa asiática revela que os acampamentos de verão são uma prática das mulheres da cidade para relembrar a cultura ancestral, é possível se sentir enganado. Até aquele momento, já foi possível ser dissuadido por Ulrike algumas vezes dentro do mesmo filme, que começa parecendo um musical dentro da Transiberiana para se tornar um documentário etnográfico sobre a cultura mongol. É indescritível o frisson de, depois da sensação de acordo entre público e cineasta desmoronar, relembrar que, o tempo todo, o filme era declaradamente do gênero ficção. Ulrike declara o seu o amor pelas manifestações culturais diversas através do feminino, do teatro e da comédia — recurso do qual, pode-se dizer, se utilizou em quase todo seu trabalho.
A diretora alemã esteve em Porto Alegre para a abertura da mostra e conversou com o público após da exibição do filme-fábula Sob a Neve (2011), filme-fábula protagonizado por dois dançarinos kabuki. A história dos modos de vida das pessoas da região é contada através de lendas locais. Perguntaria Ottinger: e de que outra maneira falar sobre as coisas, se não falando sobre o que se fala? Este, assim como Joana d’Arc da Mongólia, é um filme de ficção que faz as vezes de um documentário. É difícil lembrar que a coreografia de um dos gêneros mais estetizados de teatro do mundo está servindo, ali, para contar sobre uma população e uma cultura que realmente existem.
Originalmente publicado no Zinematógrafro em 2013.